sábado, 3 de dezembro de 2011

"Estou voltando para casa.E levo a vida na mala"

Este é o título de uma interessante reportagem,da autoria de Ricardo Marques,publicada no Expresso de 26 de Novembro.
Creio que os leitores brasileiros gostarão de a ler e por isso a transcrevo.
O chão desapareceu e ninguém deu por isso.Onde havia pedra e alcatrão há agora caixas e caixotes,sacos de plástico e sacos de pano,malas vermelhas,malas azuis e até malas que,podendo não o ser,parecem mesmo Louis Vuitton.Cátia e Renato navegam pelo mar de bagagens à porta do Cais da Rocha Conde d'Óbidos,em Lisboa,sem ligar aos detalhes.Gastaram 80 euros numa loja chinesa e enfiaram oito anos de vida em Portugal em 12 enormes sacos de viagem pretos,apertados com fita-cola e trancados a cadeado.Esta manhã,dia de voltarem de vez para o Brasil,a bordo de um navio transatlântico,têm os olhos demasiado pesados e vermelhos e uma sensação estranha de frio.Não dormiram a noite toda para que nada falhasse,mas sabem que falta alguma coisa."É uma palavra...Só não sei qual",lamenta Cátia.Renato não pode ajudá-la.
O regresso definitivo a casa dos imigrantes brasileiros,tendência com alguns anos,ganha uma nova dimensão nesta sexta-feira,18 de Novembro."It seems like Brazil is going home",brinca a responsável da operadora de cruzeiros enquanto tenta arrumar uma centena de passageiros junto ao edifício,à procura de espaço para estacionar um camião.São todos brasileiros vindos da Irlanda,o que torna desnecessária a tradução.Algo como:"Parece que o Brasil está a voltar para casa".
O regresso em massa é tão verdadeiro em inglês como em português.A novidade aqui é a forma de lá chegar.Nos últimos cinco anos,os imigrantes brasileiros descobriram nas rotas marítimas transatlânticas um oceano de vantagens.Poupam dinheiro(para todos,o bilhete é mais barato do que o de avião),não existe limite de bagagem(para muitos é o mais importante)e pelo meio têm quase duas semanas de férias(para alguns,as primeiras).Resultado:724 dos 1740 passageiros esperados no "Vision of The Seas" são brasileiros a caminho de casa.
O negócio é tão bom que custa a acreditar.Por isso,Marilda Possatti,42 anos,resolveu experimentar antes."Já fiz esta viagem no ano passado,só para ver como funcionava.Estou voltando para casa e levo a vida na mala.Só ficaram os móveis,porque são velhos".Marilda embarcou com 20 malas,que foi acumulando no último ano."Consegui um ótimo negócio na feira,comprei um monte delas,e encontrei algumas no lixo",explica.Na hora de lhes colar a etiqueta de embarque - com o nome e o número de camarote - são todas iguais."Olha as minhas mãos.Trabalhei oito anos em limpezas.Mas consegui tudo o que queria.Tenho casa e carro lá.Está na hora de regressar no Brasil.Aqui está ficando difícil e agora é descansar até chegar".
Para pelo menos cem brasileiros parados à porta do edifício do cais,a palavra,neste instante,é esperar.Voaram desde a Irlanda nos últimos dias e esta manhã ainda com as etiquetas do avião presas nas mochilas,foram os primeiros a chegar.Aquilo que esperam é verde e já tem um mês de alto mar.O contentor AWSU527001 tem capacidade para 25 toneladas de carga e mal se abrem as portas confirma-se que vem cheio de malas e caixotes."Nunca tinha visto uma coisa assim",admite ao Expresso um espantado Bruno Matos,general manager da agência de navegação Arenthern."Combinaram na Irlanda e mandaram vir de barco um contentor com a bagagem de todos.É impressionante".
Bruno sabe do que fala.Nos cruzeiros dos últimos anos tem visto muita coisa que não julgava possível.Como a história de uma mulher que,pressionada pelo atraso no embarque,garantia que a sua bagagem estava prestes a chegar."A meio da tarde aparece uma carrinha da Ikea cheia de móveis.Era a bagagem dela",conta.Apesar de os representantes da companhia de cruzeiros garantirem que há um limite de três malas e 90 quilos por passageiro,a realidade ultrapassa-os e a regra muda para um "desde que caiba no camarote".
Pode até ser incómodo para os passageiros,que dormem no meio das malas,mas a equipe de limpeza do navio agradece."Contaram-me que a viagem do ano passado foi aquela em que tiveram menos trabalho.Nem conseguiam entrar nos camarotes",confessa Bruno Matos.Este ano,a companhia de cruzeiros Royal Caribbean solicitou mais uma dúzia de bagageiros apenas para trabalharem dentro do navio,encaminhando até aos camarotes a bagagem que entra no porão.A uma média de seis a sete malas por passageiro,entraram no "Vision of the Seas" entre 10.440 e 12.180 malas.
Aparecido Moretti,58 anos,comprou as suas num chinês.São iguais às de Renato e Cátia.Dois amigos emprestaram a carrinha e a força de braços para a descarregar."Quantas malas são?Deixa ver...Dez,onze,mais aquelas ali...Umas dezoito.Mas levo tudo.Faltam-me dois dias para estar cá oito anos.Vou partir antes e vou levar a família comigo,filha,genro e neta.O que vou fazer?Ainda é cedo para me reformar,mas chegou a hora de voltar".
Para a família Moretti,casa é em Presidente Prudente,inspirada em Prudente de Morais,primeiro civil a assumir a presidência do Brasil.Tomou posse a 15 de Novembro de 1894 e,além de restabelecer as relações com Portugal,conseguiu um acordo que levou para o país muitos emigrantes japoneses.Hoje,muitos dos que lá chegam estão,na verdade,apenas a voltar.
Com perspectivas de crescimento económico em sentido inverso às de Portugal,e melhores que as da Europa,o Brasil recebe quem saiu e quem nunca lá esteve.Quem pode ir de navio e mesmo quem não tem dinheiro para voltar.De acordo com a Organização Internacional das Migrações,este ano já viajaram para o Brasil 455 cidadãos ao abrigo de programas de retorno voluntário,com bilhete pago.Foram 2023 desde 2007.
Pamella Suzarte,uma brasileira de 28 anos há doze em Portugal,trabalha numa agência de viagens na Praça do Chile,Lisboa.Vende bilhetes de avião e,nos últimos meses,especializou-se em idas."Por dia estamos a vender entre seis a doze bilhetes,muito mais que há uns anos.Está muita gente a ir embora.Alguns porque não têm emprego,outros porque têm.Há muitas empresas portuguesas que  estão a abrir lá e levam os funcionários.Eu vou ficando.A última é minha",diz ao Expresso.
No "Vision of the Seas",explica Francisco Teixeira,director da Royal Caribbean em Portugal,"os passageiros são todos iguais"."Não há qualquer diferença entre turistas e quem regressa a casa.A filosofia de trabalho é a mesma".Com rotas sempre esgotadas,o mercado brasileiro é cada vez mais importante para os operadores e Lisboa ganha peso nos cruzeiros.Os embarques de Novembro,com os navios a atravessarem o Atlântico para o verão do Hemisfério Sul,explica fonte do Porto de Lisboa,são preparados seis meses antes e o Cais da Rocha Conde d'Óbidos(normalmente parado) é reativado.
Quem viaja começa a pensar mais cedo.Marco e Irene Malan já têm netos no Brasil."Decidimos há um ano que íamos voltar.Comprámos as malas na loja do chinês,sete euros cada uma".Meia dúzia direitinhas a Panorama,Espírito Santo."Vamos felizes,conseguimos o que queríamos,mas sete anos cá é tempo suficiente",conta Irene ao despedir-se dos amigos portugueses."Obrigado a vocês e a este país.Agora,vamos fazer uma viagem que nunca fizemos.Por mar".
Cátia e Renato já estão a bordo e com a bagagem arrumada.Não os preocupa o emprego - ele até já tem uma oferta para ganhar o dobro do que ganhava cá.Mas continuam com o mesmo problema.Falta-lhes uma palavra.Chegaram há oito anos,ele com 19,ela com 20."A nossa vida de adultos,aqueles anos em que vemos o mundo como ele é,estivemos em Portugal",confessa Renato."Deixo cá os meus pais,o meu irmão e minha irmã.Casaram ambos com portugueses.Agora vamos para o Brasil e não sei o que sinto.Não é medo,não é receio..."Talvez seja saudade.Ou a emoção de poderem abraçar a filha que deixaram lá com três anos.Chama-se Cristina.A palavra é essa.

1 comentário:

Beth/Lilás disse...

Olá amigo Rui!
Achei ótimo o texto e pelo que estou vendo na televisão por aqui, realmente são muitos os que agora voltam.
Achei bonito alguns agradecerem ao povo português o tempo que estiveram por aí ganhando dinheiro.
um abraço, carioca