segunda-feira, 9 de novembro de 2009

CESÁRIA ÉVORA : SENHORA DAS ILHAS


Este é um belíssimo trabalho de Alexandra Cabrita,com fotografia de António Pedro Ferreira,publicado no ACTUAL do Expresso,em 24 de Outubro.
O título do trabalho é
Senhora das ilhas
Manhã de temporal em Lisboa.Cesária Évora acorda cedo depois de uma noite de festa com Celina Pereira,Maria Alice,Laura,Tito Paris...Houve direito a cachupa da boa e conversa pela madrugada na Casa da Morna.Veio a Portugal por dois dias para promover "Nha Sentimento"(edição Lusafrica) e é ponto assente cumprir a agenda à risca.São nove e meia.No quarto do hotel onde se instalou ainda termina o pequeno-almoço.Ovos mexidos intercalados por já cinco cigarros.Fuma 80 por dia e há-de continuar a fumar.
"Quando o mal não é para morrer,a gente não morre!Deixei de beber a 15 de Dezembro de 2004.Foi uma decisão minha,não dos médicos.Não vou na conversa deles...".
Acende outro e mais outro cigarro.Olha a cidade e gaba-lhe a paisagem sobre o Tejo. "Gosto dos sítios onde me tratam bem",confidencia."Respondo-lhes com a mesma amizade".Não sorri."Em Paris é a mesma coisa.Tratam-me bem...".Fala de Los Angeles ainda,fala de Tóquio.As cidades servem-lhe de âncora para esconder a timidez,a falta de à-vontade com o português,que vai ter que usar como pode para contar a história do novo disco.
Diz-se satisfeita com o trabalho.Fala dele com distância.Como distante soa no disco a sua voz.A mesma distância que separa e une a música árabe da morna que tornou célebre e à qual agora quer dar destaque.Faz silêncio.Isso é conversa para musicólogos,coisa que ela não é."Escolhi mais mornas do que coladeras,mas acabei por gravar mais coladeras do que mornas.Ficou assim",encolhe os ombros porque tanto gosta de mornas como de coladeras.
Não é indiferença.Antes simplicidade.Cesária não sabe o que significa drama.Fatalidade tem outro sentido no seu vocabulário.Morte e vida são a mesma coisa.O destino de todos é a felicidade.E nada disto é complicado.A dor e a alegria coabitam.O amor vai e vem.O importante é sentir.Cesária,diz,é sentimento.Cesária,diz,tem Cabo Verde nos olhos.Antes,agora e depois."Nha Sentimento" é isto que Cesária diz.Cesária explica porquê.
"Sempre fui feliz.Toda a gente gostava de mim.Ainda é assim.Mas nunca liguei aos livros.Na escola nem os trabalhos fazia.Não passei da 2ªclasse.Andava num orfanato de freiras portuguesas e cantava na igreja.Só me tornei artista depois.Um dia vi um grupo de rapazes a tocar na rua,entre eles estava o meu interessado,aproximei-me sózinha e comecei a cantar com a voz baixinha."Canta mais alto que tens boa voz",disse-me ele.Nunca mais deixei de cantar.Hoje já não sou menininha.Tenho 68 anos.O amor passou para mim.É passado passou.Agora é andar para a frente.A vida é assim.Uns envelhecem,outros crescem.Tendo saúde e trabalho,não me sinto mais frágil.Dizem que tive um AVC,mas não foi.Senti uma cãimbra na mão.Não passou disso.Mas um dia vou ter que parar.Quando me sentir cansada,cansada mesmo,tenho que parar.Esse dia ainda não chegou.Por isso,não há tempo a perder.É preciso cantar a sentir.Isso o povo sabe.Num artista quem manda é o povo.Se o povo não gostar dele,fica sempre no rés-do-chão,nem vai ao 2ºandar...".
Fala serena,mas o génio é forte,deixa-se ver no canto do olho,no trejeito dos lábios.Mexe nos anéis que lhe enchem os dedos com um nervoso miudinho,ajeita as pulseiras.Está à espera de uma encomenda que não chega.Batem à porta do quarto.Recebe quatro maços de tabaco.Tira-os do saco de plástico e vai buscar a mala.Enrola o saco muito bem e guarda-o."É para voltar a usar,quando precisar!".Sorri."M qu'rê morrê na bô verde/E vivê na nhas canção"("Quero morrer no teu verde/E viver nas tuas canções"),diz a letra de "Verde Cabo di nhas Odjos",o seu tema preferido do novo álbum.Chama-lhes versos perfeitos.E chora um Cabo Verde feito em mundo de droga e violência."Oh!raça!Ainda estou a estudar os cabo-verdianos.Ainda não os entendo.Mudam de um momento para o outro.Mais alegres do que tristes,sempre atrás da música que,ora serve para esquecer,ora para lembrar".Lembra-se ela da juventude,quando o irmão que "castigava a gente" foi para o Canadá."Fiquei tão contente que tomei a minha liberdade!".Volta aos livros e aos filhos que não quiseram os livros.Aos filhos,aos netos e ao bisneto.Aos filhos e aos pais dos filhos que partiram sem deixar rasto,rasto que nunca quis procurar.
Sorri,olhos baços a sorrir."Falo eu dos outros.A mim não me conheço eu muito".Pensa.Sorri de novo.Os olhos ganham luz."Sou uma pessoa humilde,exijo respeito,sou brincalhona,às vezes falo muito,outras vezes não quero saber de conversa".Cala-se por momentos,mas não resiste:"Dizem que sou uma pessoa simples.Aceito.Dizem que quando canto se arrepiam,ficam em pele de galinha,sentem o coração bater mais depressa,choram.Aceito.É bom assim.Os franceses sempre acharam que cantar com os pés descalços era uma coisa do outro mundo.Não é.Sapatos só conheço os chinelos e os chinelos não servem para o palco.Às vezes fico com os pés frios como um morto!".A gargalhada solta-se.Em Maio,quando voltar a Portugal para cantar,os palcos já devem ter voltado a aquecer.

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