quarta-feira, 18 de novembro de 2009

LUANDINO VIEIRA É SANGUE DE OURÉM

Em pleno dia de Natal do ano findo,e após grata confraternização com familiares de Torres Novas,arranquei para Ourém para atear os tições da alma nas saudades do lar paterno,sob bençãos duns palhetos que são a pólvora do sangue.
Antes,porém,um pouquinho a seguir ao café de Vilar dos Prazeres,cortei à direita.O bichinho da curiosidade cocegava-me as pálpebras.Ia invadir o "Retiro dos Bem-Casados" do Vilar.
Entra-se por uma ruela de terra batida,com poças de recentes aguaceiros,onde os rodados do Fiat fazem chape-chapinho lamúrias.Pessoas de fatos domingueiros,assomam nos pátios.Muito esbugalhados fazem os olhos,as doces,longas noites de Natal!
No topo da rua,fica a actual VIVENDA MATEUS. Nada menos que os progenitores de LUANDINO VIEIRA,nascido na Lagoa do Furadouro,com o exacto nome da Pia baptismal de José Vieira Mateus da Graça,soprado na "moleirinha",vai para 40 anos.Luandino Vieira,que é hoje um dos escritores mais pujantes e originais,de expressão portuguesa,de aquém e de além-mar e que vai sendo tempo de honrarmos,perpetuando-lhe o nome na sede do concelho.

Atrelado a forte corrente,um anafado cão de guarda arremessa nos ares dois gô-ô-glú molengões.Nem um gemido assustadiço,nem raspagens no saibro de unhas em histerismo.Um "cagunças" que se estima num relance e se limita a dar cumprimento a um dever de ofício.Por mais que me desdigam,os cães conhecem sempre as intenções dos homens,e reagem conforme as circunstâncias.
- Patrão,está cá gente de bem,no portal do cerrado!
Jurava que foi apenas isto o que disse o podengo.
Pouco depois,no carreiro acimentado que dá para a cozinha,surge um homem alto e reboludo.Um porreirão que logo de entrada me aponta aos queixos com um copo de branco.
- É da minha lavra.Por aqui me vou entretendo desde que regressei de África.Prove que vai gostar.
  (Haverá por aí,algum vinho melhor que o nosso,aquele que é fruto do nosso esforço e dos nossos cuidados?)
Umas sobrancelhas de  palha de aço emaranhadas carregam-lhe sombras no olhar muito amplo e bom. Chispam-lhe horas de sobressalto,amassadas com orgulho.Os dez anos de Luandino,na fritadeira do Tarrafal,onde só ganhou amigos,incluindo directores do Campo de Concentração,marcaram-lhe sulcos que são estigmas do sal das lágrimas e mordem o rosto de qualquer homem que se preze de ser Pai. É que não é  coisa de somenos,ver um filho amarfanhado,torturado e perseguido,pela simples razão de que esse filho se impôs como um humanista e escritor revolucionário,defensor dos oprimidos e infelizes musseques.Um artista a quem a mais alta assembleia de críticos literários do regime de Salazar,a Sociedade Portuguesa de Escritores,atribuiu o 1º prémio,por direito próprio.
O Pai Mateus é natural de Peras Ruivas.Casou e constituiu lar na Lagoa do Furadouro.
Ainda rapazola e antes do romper da alva,trepava às Fontainhas para servir de ajudante ao Ti Almeida Pedreiro. Num gesto maquinal revolve nos bolsos recordações de quando,pelas tardinhas de ante-Páscoa,ajoelhava aos pés do bonacheirão Padre Sousa,num alívio de pecadilhos das horas juvenis malucas. E da seiva duma aldeia tão bucólica como é Peras Ruivas,com a sequiosa e rude bacia serrana da Lagoa,rebentou um dos mais fortes baluartes da moderna literatura angolana,criador de vocábulos que são diamantes do mais fino quilate,falam a música dos batuques e saltam fagulhas das dolentes fogueiras do sertão.


Texto de Lopes Sebastião,de 1972.

Publicado em "SEGUNDA PRAÇA",1978,de que me orgulho de ter um exemplar oferecido pelo autor.


1 comentário:

Anónimo disse...

Conheci bastante bem o pai do Luandino, Sr Joaquim Mateus. As amizades com o filho não eram das melhores. Talvez há cerca de 25 anos deu-me uma máquina de escrever (que ainda conservo)que seria do Luandino. O Joaquim Mateus da Graça era um homem muito díficil. Destemperado. Tinha contudo a sua graça.