segunda-feira, 18 de agosto de 2008
O BUDA SEDUTOR
Dorival Caymii deve a su existência a um elevador.Não a um elevador qualquer mas ao elevador Lacerda,ainda hoje símbolo da Bahia.Porquê?Porque a necessidade de operários especializados para construi-lo,levou o Brasil a abrir as portas aduaneiras a mais uma leva de italianos,atraídos pelo Novo Mundo.Entre eles vinha Enrico Balbino Caimi,que à chegada se casou com Maria da Glória,uma portuguesa.Dorival ainda vinha longe,tal como vinham longe as suas canções e a lenda que havia de fazer dele um dos patriarcas baianos mais célebres.Mas Enrico e Maria já "eram" os seus bisavós.
Caimi,de início,não Caymmi.Conta a neta de Dorival,Stella,no livro que escreveu sobre o avô ("O Mar e o Tempo",Editora 34,SP,2001),que a mudança de grafia pode dever-se a um funcionário aduaneiro mais dado a estrangeirismos.Mas o apelido ficou,daí em diante.Em 1909 Durval (neto de Enrico) e Aurelina casaram.Os seus dois primeiros filhos morreram à nascença,asfixiados pelo cordão umbilical.Durval,desgostoso,prometeu a Deus baptizar os seguintes com nomes começados por D.Assim nasceram Deraldo(1912),Dorival(1914),Dinah(1916) e Dinahir(1919).Durval cumpriu a promessa e Deus não o contrariou:todos viveram.
Dorival Caymmi,nascido às 22h50 do dia 30 de Abril de 1914 (de "côr mestiça",diz a certidão),foi criado entre mulheres,"ex-escravas ou filhas delas",a quem ele ouvia falar "entre o português e o iorubá,o nagô".Nelas se inspirou,depois,como na vida dos seus próximos,para criar canções."Adalgisa" foi a sua primeira professora.E "João Valentão" foi inspirado no pescador Chico Carapeba.Levou nove anos a juntar-lhe este verso: "E assim adormece este homem/que nunca precisa dormir pra sonhar".
Dorival precisava de dormir,sempre precisou,mas também sonhava acordado.Um tio do lado materno inundou-o de literatura(José de Alencar,Machado de Assis,Alexandre Herculano,Eça de Queiroz).O pai lia-lhes a Bíblia.
Da casa dos avós,namorava o mar.
Tudo isso misturado levou-o a tentar tocar o violão do pai (que tocava,também piano e bandolim),apesar das proibições.A coragem compensou-o:o pai acabou por ensiná-lo a tocar.Mas Dorival já queria seguir noutras direcções.
Quando fez a toada "No sertão",a primeira composição da sua vida,começava a desviar-se dos rumos habituais do samba.
Ao falar da bossa nova,no livro "Verdade Tropical"(Ed.Companhia das Letras,SP,1997),Caetano Veloso diz que "o grande esforço de modernização de João(Gilberto) se apoiou na modernização sem esforço de Caymmi".Resultado:"Rosa Morena foi por ele eleita como tema para a construção do estilo que veio a se chamar de bossa nova".
Caymmi inspirador da bossa?
É verdade que ele foi amigo próximo de Vinicius,Jobim e contemporâneos,enquanto era idolatrado pela geração baiana mais nova(Caetano,Gil,Bethânia,Gal),mas o estilo que Dorival Caymmi foi construindo era dele só.Chico Buarque,no primeiro dos 12 DVD feitos sobre a sua obra,diz:"Caymmi para mim é um caso à parte na música brasileira.Tenho uma admiração profunda por ele.Ele é de tal modo despojado que é difícil imitá-lo,copiá-lo,fazer uma música "a la" Caymmi."
Mas no dia em que o convidaram para cantar no Rádio Clube da Bahia,em 1935,ainda estava longe dessa consagração.Apenas a sua voz quente e sedutora se erguia acima dos sons habituais,atraindo atenções.Os seus conhecimentos culturais,antes disso,foram enriquecendo:à literatura juntou o cinema ("tive a melhor colecção de Rodolfo Valentino num caderno inteiro"),a música erudita (Debussy,Ravel,Bach),o jazz.
Quando se mudou para o Rio de Janeiro,já trabalhara num jornal("O Imparcial",da Bahia,que fechou em 1929),já tocava violão,compunha e cantava na rádio.
Cumprido o serviço militar,Dorival viu-se sem emprego na Bahia.Chegou a fazer um curso de escrivão mas o lugar não chegava.Então meteu-se num barco de passageiros(um "Ita",ou "Itapé")e rumou ao Rio.
Embarcou no dia 1 de Abril de 1938 e chegou no dia 4.Nessa altura com 24 anos,Dorival era um jovem com ar galanteador que caía sem grandes truques nas boas graças das mulheres.E ele fazia por isso,claro.Brejeiro,viria a dizer mais tarde,em entrevistas:"Gosto tanto de mulher,que quando nasci olhei para trás."
Nessa altura,porém,era tempo de olhar para a frente,num Rio mal refeito do golpe de Getúlio Vargas.Dorival andava pela rádio,a ouvir novidades,até que o empurraram para a Rádio Tupi quando ele tentava arranjar emprego na revista "Cruzeiro".Na rádio propuseram-lhe tocar duas vezes por semana,com estreia marcada para 24 de Junho.Começou a ser um sucesso.Até nas páginas do ressuscitado "O Imparcial",onde ele trabalhara,surgia um artigo com uma foto sua:"Senhor de uma voz belíssima".
Mas o verdadeiro sucesso foi Carmen Miranda quem lho deu.
A história conta-a Ruy Castro no livro "Carmen"(Ed.Palavra,2007):A rodagem do filme "Banana da Terra" estava parada porque uma das canções,de Ary Barroso,era cara de mais.E Ary não baixava o preço.Um dos envolvidos no filme ouvira Caymmi cantar na rádio "O que é que a baiana tem?" e propôs comprar-lhe a canção.Convenceram-no então a gravar a sua voz,sob a promessa de que lha devolveriam em disco,mas enviaram a gravação a Carmen.
À primeira ela não gostou,mas quis ouvir Dorival ao vivo,em sua casa.E ele foi.E a canção foi imortalizada no filme,ao estilo de Carmen,com Caymmi dentro.
Na Rádio Tupi mudou,também,de vida:foi aí que conheceu e casou,em 1939,com a cantora Stella Maris.Juntos tiveram três filhos,hoje todos eles músicos:Nana,Dori e Danilo Caymmi.
Em 94 anos de vida,Dorival gravou dezena e meia de discos e compôs 120 canções.
"Rosa morena","O mar","Samba da minha terra","Acalanto","É doce morrer no mar","Marancangalha","Marina","Modinha para Gabriela","Doralice","A vizinha do lado"Acalanto ou Você já foi a Bahia?" são algumas das mais célebres.
Jorge Amado descreveu-o como "o intérprete da vida popular,o bardo cantor das graças,do drama e do mistério da terra e do homem baiano". E o poeta e antropólogo António Risério,escreveu que "Caymmi é nativo e contemporâneo",no seu ensaio "Caymmi:uma utopia de lugar"(Ed.Perspectiva,SP,1993). Caymmi,escreveu ele,"traz para o samba da Bahia a dissonância e outras conquistas do impressionismo europeu.Mas o que se impõe,sobretudo,é o seu poder de sedução".Esse poder de sedução foi o que,ao longo de uma vida longa,lhe valeu na vida,na música e noutras artes que abraçou,como a pintura (é autor de muitos quadros,alguns deles auto-retratos).
Nas últimas décadas de vida,Dorival foi alvo de muitas homenagens e distinções.Em 1991,Gilberto Gil compôs uma canção inspirada nele,"Buda Nagô"."Dorival é ímpar/Dorival é par/Dorival é terra/Dorival é mar".Stefan Zweig,que Dorival lia,escreveu que a atitude da cidade de Salvador da Bahia,antes do choque do progresso,era a de "uma rainha viúva grandiosa como as das peças de Shakespeare".
Foi essa Bahia que Dorival amou e cantou,até que seu coração se deteve,a 16 de Agosto de 2008.Não resistiu a uma insuficiência renal que o mantinha em casa,acamado,sob vigilância médica.A Bahia tem,agora,mais uma razão para acentuar a sua majestosa viuvez.
Texto de Nuno Pacheco,no Público de hoje.
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1 comentário:
Lindo texto!
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