quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
MÁRIO SACRAMENTO : DIÁRIO
Desabafo antigo,que encontrei num caderno de esparsos,antecessor meio inconsciente deste Jornal:
Vamos morrendo num charco de espantos.Do que estivemos para ser ninguém saberá!Esperámos 10,20,30,40 anos...E que queríamos?Apenas o direito de interrogar e acertar a vida,de sermos homens na companhia de homens.Uma chuva de escórias tudo cobriu e crestou.É crime viver.É crime pensar.Porque só se vive e só se pensa de e com - e estes foram bloqueados.
Mas não me dói o que foi,não me dói o que é:opus-me,oponho-me,sofri e sofro,mas isso tem o seu lado fértil.Alguém recolherá a semente da frustração e da dor.E empurrará a memória dos algozes para a ignomínia dos séculos.
O que custa são os sonhos mortos - o não faço hoje,o fica para amanhã,o amanhã de nunca.O sonho do menino já não é o do velho,ou já não pode o velho com o sonho do menino.E,todavia,se é esta a analogia,o que mais me surpreende,quando olho para trás,é não me apreender como um homem disto ou daquilo,em termos peremptórios.Sempre pensei que só vivendo mil anos chegaria à sageza.A interrogação e a dúvida nunca me abandonaram.E,sem embargo,ó irrisão!,foi de empenhamento total a minha vida!Quem poderia proceder de outro modo,em boa consciência,face à invasão dos bárbaros?
O mais verdadeiro,o mais íntimo,ficou no limbo.Outros sonharam e fizeram.Um avo,mas fizeram.Porque não é assim comigo?O orgulhozinho diz-me,blandicioso e sedativo:é que pode-se pescar um sonho de água,mas não um sonho de fogo.Os gorazes da quimera alimentam-se de sereias...E não há lotas para estas,só defeso.É proibido pescar sobre as pontes e a sereia é um anfíbio...
Que ninguém despreze o avo.O infinito é uma sucessão avondíssima de avos,um avoísmo perpétuo...Eis-me o fundador de um novo ismo!Por Sant'Iago aos avos me vou,de quebrada em quebrada,sobre o charco dos espantos...
Passei a vida a atear uma fogueira de ramos verdes sob as abas de um espantalho.A fogueira não pegou e o Judas ainda lá está.Foi errado?Não foi certo nem errado:não fui eu quem pendurou o espectro de trapos no meu destino!Podíamos ter servido para coisa melhor,sim.Mas os Buchenwald também.E nem bilhetinhos como este deixaram.
Havia o recurso,é certo,de fazer de conta que tudo se passava na cela dum mosteiro,durante a Guerra dos Cem Anos.Mas havia,de facto?É extraordinário como até o "é certo" e o "de facto" colidem! Teríamos sido traças aninhadas entre as páginas dos in-fólios... Não,não vejo um Joel Serrão,um Magalhães Godinho,um Magalhães Vilhena e tutti quanti se entricheirarem por detrás do ficheiro.Nada é mais precário que a erudição,cujo futuro pertence aos computadores electrónicos.
O avo,sim.Há que recuperar o avo,embora tarde e a más horas. Quero ser,definitivamente,o criador do avoísmo! Ou o seu sistematizador avulso,que o mesmo é dizer: coerente.
Avulsamente aos avos me averei...
E sem esquecer,nunca,esse momento da sabedoria que diz: tu não cobiçarás o boi do teu vizinho!Como se trata de bifes,fácil é concluir que a máxima seja inglesa. Punhamo-la então em português de lei: tu não cobiçarás a bibliografia bovina do teu patrício... sê vegetariano,que a capitação não dá para mais!
Mário Sacramento
in Diário,Julho 28,1967
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