sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

RELAÇÃO DO NAUFRAGIO DA NAO SANTIAGO (1585)

"...
Houve esta manhã muitas lágrimas,com grandes demonstrações de contrição e arrependimento de culpas,disseram-se as ladainhas,pediam todos misericórdia a Deus,houve muitos que se davam grandes bofetadas com grandes mostras de sentimento e dor,outros traziam alguns retábulos de Nossa Senhora,mostrando-os de algum lugar mais alto,donde melhor se pudessem ver,punham-se todos de joelhos,e com grandes gritos,e muitos soluços e lágrimas,que eram contínuas,chamavam pela Senhora que lhes valesse em tão espantosa aflição,e já lhe não pediam outra cousa mais que remédio para as almas,que da salvação dos corpos estavam todos desconfiados.
...
Ia esta nau,como todos diziam,a mais rica e próspera que havia muitos anos saíra do Reino:estava o chapitéu alastrado de moedas de oito reales em grande quantidade,afora muitos sacos que se botaram mutrados ao mar:estava o dinheiro debaixo dos pés tão pouco estimado,que não havia naquela ocasião quem olhasse para ele,posto que com alguns poucos da gente comum pode a cobiça tanto,que encheram as sacas de reales,as quais pretendiam levar e salvar nas jangadas que faziam.
No primeiro e segundo dia depois da perdição,não se fez caso do batel,posto que muitos tratavam de o consertar;porque os mais cuidavam,que se havia alguma esperança de salvação,poderia ser por meio das jangadas que se ordenavam.
...
Os que estiveram no batel,enquanto se consertou,passaram muito trabalho de fome e sede,porque não bebiam mais de duas vezes ao dia,cada um sua vez de vinho puro,sobre talhada de marmelada ou de queijo,e dormiram a primeira noite com água pela cinta;a segunda muito apertados no batel,porque eram muitos,ainda que com menos água;alguns estiveram de fora do batel encostados a ele com água pelos peitos.
..."

ESCRITA DE MANOEL GODINHO CARDOZO
HISTÓRIA TRÁGICO-MARÍTIMA (Bernardo Gomes de Brito)

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