domingo, 12 de outubro de 2008

DESCOBERTA DO BRASIL



Comquanto alguns já tenham afirmado que a descoberta do Brasil não fôra um facto casual,é certo que muitos ainda creem que fosse devida a uma tempestade que acossasse os navios de Cabral para oeste.Não é portanto de estranhar que mais uma vez se ponha em evidencia que foi um proposito aquela descoberta.
De todos os nossos roteiristas um dos mais notaveis,pelo seu saber e experiencia,é Duarte Pacheco,o celebre autor do Esmeraldo de Situ Orbis,uma das mais preciosas joias da sciencia do tempo,em que o autor se revela um oceanografo de subido valor da sua época.
Prova-o o principio do primeiro livro,sobretudo o capítulo segundo ao tratar da discussão da parte solida e da liquida do globo.Descrevendo o Athlantico,mostra-o cercado de terras a leste e a oeste,e,nessa sua idea,aí se encontra a passagem que a seguir transcrevemos,pela qual se vê que,em 1498,já se sabia da existencia de terras a sudoeste do Oceano:
"...E alem do que dito he,ha experiencia,he madre das cousas,nos desengana e de toda duvida nos tira;e portanto bem aventurado Príncipe,temos sabido e visto como no terceiro ano do vosso reinado do hanno de nosso senhor de mil quatrocentos e noventa e oito donde nos vossa alteza mandou descobrir a parte ocidental passando alem ha grandeza do mar oceano,onde he hachada e navegada hua tam grande terra firme,com muitas e grandes ilhas adjacentes a ela,que se estende a setenta graaos de ladeza da linha equinocial contra o pollo artico e posto que seja àsaz fóra,he grandemente povorada,e do mesmo circulo equinocial torna outravez e vay alem de vinte e oito graaos e meo de ladeza contra o pollo antartico..."
Quere dizer,El-Rei D.Manuel,em 1498,ordenava que se procedesse a descoberta de uma tam grande terra existente ao de lá do oceano com muitas ilhas adjacentes.Refere-se Duarte Pacheco,neste ponto,evidentemente,às Antilhas já descobertas e tambem ás terras ao norte que Gaspar Côrte Real em 1500 se empenhava em reconhecer,isto é,no mesmo anno em que uma exploração se devia fazer para o sul sob o mandato de Cabral,obedecendo assim a um plano premeditado.
Como sabiam,porem,os portugueses que,passada a grandeza do mar oceano havia terras?De uma maneira muito simples para quem os segredos do mar,das correntes e dos ventos,já não eram desconhecidos.
Foram os Açores,descobertos na quarta decada do seculo XV,que forneceram os elementos precisos para aquela conclusão,por isso que os seus primeiros povoadores notaram que as correntes e os ventos faziam arrojar ás praias pedaços de madeiras e troncos de arvores e algumas vezes cadaveres de individuos com feições muito diferentes das dos europeus!Outras vezes eram pequeninos côcos que,o mar arrojava.Evidente era que os ventos variaveis de oeste e a circulação da corrente,derivada do circuito do Atlantico norte,lhes denunciava que para oeste devia haver qualquer terra que o genio aventureiro dos portugueses tinha de reconhecer,com aquele sigilo proprio da epoca monopolista,em que se mantinha então o trato mercantil;porque ainda hoje o segredo é a alma do negocio.
Quem sabe mesmo se Colombo,pelo seu casamento com uma filha de Perestrelo,não encontrara nos papeis deste mareante indicações daquela natureza?Esta passagem referida por Teixeira de Aragão na sua Breve notícia sobre o descobrimento da América,publicada nas "Memórias da Comissão Portuguesa",parece comprová-lo;"Las Casas,contemporaneo e amigo de Cristovam Colombo,teve em 1502,em seu poder as cartas do descobridor da América com as indicações das terras ocidentaes colhidas por pilotos portugueses".Mas,temos tambem uma identica passagem a confirmá-lo a pag.18 Cap.IV da "Historia General y Natural de las Indias" de Oviedo,publicada pela Real Academia de la Historia e anotada por D.José Amador de Los Rios - Madrid 1851:
"Movido,pues,Colon con este desseo como hombre que alcançaba el secreto de tal arte de navegar (quanto á andar el camino),como docto varon en tal sciencia,ó por estar certificado de la cosa aviso del piloto que primero se dixo que le dió noticia desta oculta tierra en Portugal..."
Foram decerto as informações destes pilotos e os produtos trazidos pelos ventos e correntes ás ilhas dos Açores que influiram no animo de Afonso V,levando o a consultar o cosmografo florentino Toscanelli,por intermedio de Fernan Martins sobre a possibilidade de ir á Índia pela via de oeste.A resposta dada de Florença em 25 de Junho de 1474 continha umas instruções minuciosas sobre a derrota e era acompanhada de um mapa demonstrativo(mapa de Toscanelli).
Colombo pelas suas relações com o negociante Lourenzo Giraldi estabalecido em Lisboa,refere o Snr. Teofilo Braga,teve notícia daquela carta,podendo com a intervenção desse amigo obter de Toscanelli copia dela com o respectivo mapa;o que decerto muito o auxiliava nos seus planos.
Gaspar Frutuoso,nas Saudades da Terra,falando das navegações para o ponente,menciona que João Vaz Côrte Real,fôra grande aventureiro,andando por capitão de grossas armadas e descobrindo varias terras do ocidente dos Açores,tendo numa dessas viagens,vindo de oeste,sido o primeiro que vira uma erupção do Vulcão da ilha do Fogo.
Há tambem quem suponha que já havia noticias da existencia da terra,que viria a chamar-se Brasil,em 1436,com fundamento no mapa de André Bianco,porque este cosmografo dá indicação de terra montanhosa,depois de varias pequenas ilhas fronteiras á costa ocidental d'Africa,e que no seu mapa está junto á circunferencia que o orla,como querendo mostrar que alem do oceano existia essa terra montanhosa,unica que em toda a orla se encontra,como se pode verificar no Atlas de Santarem.
Em 24 de Julho de 1486,El-Rei D.João II confirma o contrato feito entre Fernão Dulmo e João Afonso do Estreito para descobrirem a ilha das Sete Cidades ou as ilhas ou Terra firme,o que obteve de El-Rei nas condições constantes da mesma carta.
Partindo da ilha Terceira deveriam fazer caminho por 40 dias sob o mando de João Afonso.
Todas estas passagens que ficam apontadas,demonstram que entre os cosmógrafos e mareantes portugueses havia indicações de que ao de lá do oceano havia terras que,pelo norte e pelo sul,deviam dar pagem para o Cathay,daqui os motivos das viagens de Gaspar Côrte Real e de Fernão de Magalhães ao serviço da Hespanha,mas educado na escola de navegação portuguesa e com auxiliares tambem portugueses de grande valor.
Mas a prova concludente e cabal deduz-se da carta,que Pero Vaz de Caminha dirigiu a D.Manuel,descrevendo a viagem quasi dia a dia com toda a naturalidade e mostrando o propósito dela e assim nos vai referindo que em segunda-feira 9 de Março de 1500,saíra a esquadra de Cabral a barra do Tejo;passando a 13 entre as Canarias e depois a 22 entre as ilhas de Cabo Verde,junto da ilha de S.Nicolau,e,assim,diz,seguimos nosso caminho por este mar delongo até sexta-feira da oitava de paschoa que foram 21 de Abril em que viram sinais de terra,de que estavam á vista no dia seguinte,sobressaindo-lhes acima do horizonte um monte redondo,com serras mais baixas a sul.Ancorou em 23 em frente da foz dum rio mas,como na noute seguinte soprasse rijo o vento suéste com alguns aguaceiros,levantou ferro a 24 e foi navegando ao norte ao longo da costa por cerca de 10 léguas,encontrando então um porto seguro,onde a esquadra fundeou.
Não há nesta descrição qualquer mostra de contrariedade devida aos ventos ou ás correntes,nem qualquer indício de surpresa pelo aparecimento de terra.Tudo se relata com a naturalidade e a sinceridade de quem espera encontrar o que desejava,ou,como diz o autor da carta,o achamento desta nova terra ora achada.
A forma de dizer de Vaz de Caminha é tão correntia que só aqueles que não são da profissão poderão pôr em dúvida o realismo da descrição.A lenda do temporal que acossára a esquadra para oéste,fica completamente desfeita.O tempo pesado que sofreu foi já depois de estar fundeada com a terra á vista,em frente de um rio,como se disse.
O facto de a esquadra se destinar á Índia não prova contra o propósito que levára de reconhecer a terra;porque já se conhecia a situação das calmas equatoriais e o vento ponteiro do Atlantico sul que devia obrigar,como obriga,os veleiros a irem cortar o equador muito a oéste da zona do geral de suéste,até a encherem a latitude de 30 graus para irem montar o cabo,aproveitando os ventos varáveis de oéste.
Nada,portanto,mais natural do que aproveitar esta circunstancia,que pouco alteraria a derrota para a Índia,para reconhecer a costa que já em 1498 se sabia existir.Se Cabral não tivesse instruções para procurar obter a confirmação da existencia de terras a occidente,decerto teria tomado aguada nalguma das caboverdeanas,porque os seus navios,apesar de serem de grossa carga,não comportavam aguada para tão longa viagem como a de Lisboa a Calicut e por isso contava abastecer-se na terra achada.Decerto que a prova formal,mais conveniente,seria encontrarem-se as instruções dadas ao capitão general ou talvez a carta de prego que êle levaria consigo,mas estamos certos que,se isso houvesse sucedido,aí veríamos indicada a circunstancia a que fazemos referência como muito natural e muito justificada,e já assim o dava a entender a carta de Pero Vaz de Caminha quando,ao descrever as belesas da terra,diz:
"É que hy ouvesse mais ca tener aqui esta pousada para esta navegaçon de calecut abastara,quanto mais disposiçam para se nella conprir e fazer o que vossa alteza tanto deseja,a saber,acrescentamento da nossa santa fé."
É dos nossos dias a viagem que a barca Martinho de Mello fez com destino a Moçambique em que o seu comandante aportou a Pernambuco para desembarcar um oficial de caçadores destinado á expedição contra o Bonga,na Zambézia,que,pelo forte enjôo constante,corria perigo de vida,tendo o comandante justificado plenamente o facto pela insignificante demora que este desvio causava á sua missão numa época em que o geral de N.E.,chegando muito ao sul,ao atravessar o equador,lhes pegava logo o geral de S.E. que o obrigava a aproximar-se da costa americana,para se furtar à intensidade desse vento,que lhe seria ponteiro se dirigisse desde logo a sua derrota directamente para o Cabo.A boa navegação aconselhava-o a aproveitar os variáveis de oéste até encher a latitude conveniente para montar o cabo da Boa Esperança.
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Mestre João,que ia na armada,na carta que dirigiu ao Monarca diz que fôra a terra com o piloto de Cabral e o de Sancho Tovar,para tomar a altura do sol ao meio dia por meio do astrolabio,a fim de determinar,pelas regras do instrumento,a latitude do logar para a marcar na carta,tendo achado que era por 17 graus e que os outros pilotos usando apenas as cartas onde decerto iam lançando as derrotas pela estima,isto é,pelo rumo e distancia andada,encontravam pontos diferentes e que só quando chegassem ao Cabo da Boa Esperança é que teria Mestre João a confirmação de que êle é que deveria ter a sua derrota mais correcta;porque empregava o astrolabio e a carta,enquanto que êles,os pilotos,usavam só a carta em que cometeriam erros maiores.
Efectivamente sendo o Cabo um ponto já conhecido e portanto fixado nos mapas,aí poderiam corrigir suas derrotas,vendo-se então quem a tinha mais exacta.E acrescenta Mestre João:"quanto,Senhor,ao sitio desta terra mande vossa alteza trazer um mapa-mundi que tem Pero Vaz Bisagudo,e por aí poderá ver vossa alteza o sitio(logar) desta terra".Quer dizer:havia um mapa em que já estava indicada a terra a que a armada de Cabral aportára e não pode pôr-se em dúvida que um homem douto como era Mestre João,fisico e cirurgião,que ia na armada num dos pequenos navios que por sinal com os seus balanços no mar dificultava as observações com o astrolabio,como diz na sua carta ao Rei,estivesse inventando semelhante cousa.

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Mais uma vez,portanto,se confirma que havia indicação de que o Brasil existia;e tanto assim que Mestre João,marcando o ponto que determinára pelo astrolabio e pela carta,indicava nesta o local onde havia aportado e dizia ao Rei que no mapa de Bisagudo,na latitude de 17 graus ao sul do equinocial,poderia ver o sítio a que chegára Cabral.E que já havia notícia dessa terra prova-o tambem a carta de El-Rei de Portugal enviada ao Rei de Castela àcerca da viagem e sucesso da Índia,onde se diz:
"...Da dita armada foi Capitão General Pedro Álvares Cabral.Navegando êle alem de Cabo Verde descobriram uma terra que novamente veio á noticia desta nossa Europa,à qual terra puz o nome de Santa Cruz...",isto é,do que de novo teve noticia,ou por outra fórma de que já havia conhecimento,e,sendo assim,não é de estranhar que Pedro Vaz de Caminha escrevesse no começo da sua carta que "...os outros capitães escrevessem a vossa alteza a nova do achamento desta vossa terra nova que agora nesta navegação se achou...".Havendo já notícias da existencia daquela terra e até um mapa onde ela vinha indicada,não póde a passagem agora transcrita ter outro significado que não seja o achamento da coisa que procuravam e que pela navegação feita ficava confirmado.
Parece-nos que o que acima fica dito,é bastante elucidativo,para comprovar que a descoberta do Brasil foi efectuada de caso pensado.

Trabalho do Almirante Ernesto de Vasconcellos,Secretário Perpétuo da Sociedade de Geografia de Lisboa,publicado em Agosto de 1924





1 comentário:

Codinome Beija-Flor disse...

O bom disso tudo é que a evolução dos tempos, a técnologia nos permitiu um encontro "entre nossos mundos" e aqui chegamos mesmo que virtual, mas tão próximos.

Obrigada pelo carinho do seu comentário.
Bjos