sábado, 17 de outubro de 2009

O ZÉ "POVINHO" QUE SOFFRE



Carta inedita de GOMES LEAL ao caricaturista ALFREDO CANDIDO
Alfredo Candido,caricaturista portuguez,de nome consagrado em Portugal e no Brasil,por uma grande gentileza,que muito agradecemos,permitiu-nos a publicação da curiosa carta inedita,do grande poeta que foi Gomes Leal,e a sua reproducção,feita de memoria,especialmente para a nossa revista,d'essa admiravel figura do Zé Povinho,obra genial de Rafael Bordallo,mas cuja expressão,transformada pelo talento de Alfredo Candido,vale por creação nova.
Este "Zé Povinho que soffre" é a figura principal d'um dos bellos quadros do
Album de Mefistofeles,a que se refere com tão altos e merecidos louvores o desgraçado e inolvidavel Gomes Leal,cuja memoria e cinzas ainda quentes não vacillou um dos nomes de maior responsabilidade litteraria,em manchar de sarcasmos injustos e descaridosos e cujos restos não foram parar há dias à valla commum por o não consentiu - por honra nossa - a Camara Municipal de Lisboa.
Ao menos esta é uma consolação e um motivo de orgulho para todos os portuguezes de sentimentos.
A família e os amigos do genial poeta depressa o esqueceram;mas o civismo dos vereadores,que fallam em nome do povo,salvando-lhe as cinzas,venerou-lhe a memoria.
Meu caro Amigo
O seu magnífico
Album de Mefistófeles deixou-me maravilhado...porque,na realidade,nunca o infernal maganão poderia ser mais jovial e macabro.
Ali se conhece de certo a chispa luminosa do riso delle,fulgurando por vezes com uns clarões de labaredas sanguineas,donde resaltam casquinadas metalicas;mas quanto àquelle certo cheiro especial,assás sulfuroso,que deixa o Maligno sempre atraz de si,nada de suspeito me chegou ao olfato.Este Mefistofeles,acabou de chegar decerto,de algum
boudoir de duqueza romana,ou de princeza de arrabalde fino de Saint Germain.Com o trato das pessoas pias e de boa sociedade,Mefistofeles tem-se civilizado.Não me ofendeu,confesso-o,a pituitaria!...
Abstraindo da parte política em que não entro - porque,então,em vez de um prefacio escreveria um dicionario - não encontro ali figura nenhuma que não seja de um desenho impeccavel,d'uma nitidez de baixo relevo,e de um realismo flagrante e popular,por vezes á Tenorio,á Velasques e á Goya.Basta só recordar as figuras da Liberdade,de Mefistofeles,do Zé Povinho,da Situação e varias outras. O meu amigo tem a sciencia do claro escuro e dos contrastes de luz e sombra,que poderão fazer de si o Gustavo Doré da caricatura.
Porém,de tudo,o que mais me impressionou e o que é mesmo entre tudo mais poetico e sugestivo,pela filosofia sentimental que dessa pagina se evola,pela nota enternecida que tem,é a figura comovida e sobria do Povo,vendo desfilar para o navio do exilio os marinheiros deportados. E,alem de toda a pagina que é correcta e nobre,fixou-se-me na retina espiritual aquelle tipo simbolico e popular do nosso mareante,figura mascula e insinuante de plebeu de olhos grandes e contemplativos,redondos e bondosos como de certos bois resignados,vendo entristecido os companheiros,os amigos,os parentes,talvez os irmãos,partirem para os exilios e os degredos.Muito melhor do que o farcista
Zé Povinho,-banal,chocarreiro e farçola-tipo da indiferença setica e bonhomia-misto ao mesmo tempo do Que importa? e da frase cinica de Camillo - deixae correr o marfim- este tipo representa bem melhor a maioria do nosso povo que sofre,que pacienta e se cala,mas que tambem se indigna e revolta e chóra.Creio que este,masculo e nobre,representa muito mais caracteristicamente a indole do nosso povo meridional e triste;no fundo muito mais melancolico do que jovial,muito mais contemplativo do que pascacio e bem mais sismador do que cinico.
Alem d'isto,é sempre humano e moral não rebaixar nunca a dignidade pessoal publica,a filha inata da nobreza humana.
Por tudo isto lhe dou os mais festivos abraços e rendo homenagem ao artista maximo que fica consagrado nestas eximias paginas.Possue o segredo magnifico do claro escuro,tem o impressionante realismo,a sabia gradação de contrastes.Mas sabe ainda mais alguma coisa que não se aprende,e que é um dom genial:sabe dar o gélido
frisson,aquelle mistico arrepio do misterio,como na grandiosa pagina da noite luarenta,em que sombras sinistras se destacam.
Palavra!por minha fé!vale bem a pena ser celebre para ser caricaturado pelo seu lapis!
Wagner diz que ficava triste quando se passavam quinze dias,sem que fosse caricaturado.Que diria elle se o conhecesse!...Meu caro amigo,resigne-se! Não é o Limoeiro que o espera,é palacio de oiro da Gloria...e talvez as duas coisas juntas. Que sucesso!... Posso bem apertar-lhe vigorosamente as mãos e exclamar como o Romano:
Tu Marcellus eris!
O seu amigo e admirador
Gomes Leal

Lisbôa,Rua do Sol-á Graça,1908

Publicado na Revista PORTUGAL,Rio de Janeiro,30 de Novembro de 1923

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