quinta-feira, 1 de maio de 2008

A EQUAÇÃO DE SEGUNDO GRAU

Por volta de meio dia a Cinelândia estava igual à torcida do Fluminense: uma nuvem branca mal me permitia enxergar o outro lado da Avenida. Mas não era pó-de-arroz, era um gás que nos fazia chorar. De repente me vi correndo no meio de um monte de gente. Gritos, estampidos, confusão. Passei correndo pela rua da embaixada americana e entrei num prédio antigo, antes que o porteiro conseguisse fechar a porta. Olhei o painel da portaria e subi correndo pela escada. Não deixei cair a pasta que tinha abraçado, mas meus óculos de míope teimavam em escorregar nariz abaixo. Bati na porta e uma senhora loura me olhou com olhos claros de espanto. Falou alguma coisa com sotaque estrangeiro desconhecido para mim, tentei explicar a razão de minha visita. Eu mal conseguia gaguejar, imagine falar... Ela me puxou para dentro e fechou a porta, chamou outra pessoa e apareceu uma moça, que me olhou meio espantada, meio curiosa. Ela entrou em outra sala e voltou com um copo d’água gelada, que eu bebi já com fôlego melhorando. Um senhor de gravata entrou na sala e ficaram falando no dialeto deles. Até que a primeira loura sentou-se numa cadeira ao meu lado e me perguntou o nome, o que eu estava fazendo ali, se tinha alguém me perseguindo. Aí eu comecei a entender a preocupação deles e rapidamente expliquei a razão de minha visita: era estudante secundarista, do Colégio Estadual André Maurois e precisava de material para um trabalho da matéria de geografia! Ela só faltou me beijar! Foram muitos sorrisos e eu com aquela cara de adolescente olhando para as pernas da equilibrista lá no alto. Ganhei uma porção de folhetos coloridos, a maioria em inglês. Não me deixaram sair enquanto não tinham certeza de que a rua estava calma. Aceitei o copo de coca-cola, que eu nem gostava muito, mas não tinha guaraná. Recusei o sanduíche. Quando desci a rua parecia tranqüila, não fosse o medo, um cheiro que nos entrava pelas narinas. Peguei um ônibus para o Leblon. E comecei a viajar.

Desci do carro do meu pai no Passeio Público e fui andando para a rua da embaixada americana, perto de onde ficava a do país nórdico que eu tinha escolhido para fazer um trabalho para a escola. Em plena Cinelândia fui envolvido por uma passeata gritando contra a ditadura e a chegada da polícia militar, política e civil, com ordens brasilienses de baixar o cassetete e prender todo mundo. Mas todo mundo era muita gente e foi um pega pra capar geral: cavalaria de um lado, bolas de gude do outro, tiros pra lá e pra cá, sirenes de polícia, gritaria e muito gás lacrimogêneo. Eu sabia onde ficava a embaixada imperialista, já tinha ido lá antes jogar pedras. E foi para lá que eu corri, no meio da confusão, pois tinha um trabalho a fazer ali perto. Talvez, na volta, jogasse umas pedrinhas nos marines, pra não perder a viagem. Cheguei no prédio correndo, suado, olhos vermelhos, uma pasta de cartolina abraçada no peito, como quem carrega uma fortuna ou documentos ultra-secretos. O porteiro, idoso, não queria me deixar subir, mas eu corri escada acima, até o nono andar. Coisa simples pra um garoto de 16 anos que vivia na praia e nos campos de pelada da zona sul carioca. Subi com medo de ele chamar a polícia, mas os homens daquela lei momentânea já estavam muito ocupados na repressão à manifestação contra a ditadura. Bati na porta daquele apartamento estrangeiro, uma senhora loura abriu e, ao me ver naquele estado, puxou-me para dentro. Mandou uma funcionária também loura pegar um copo d’água e puxou uma cadeira para mim, na sala de recepção decorada com poltronas de couro e pôsteres coloridos na parede. Perguntou se eu estava bem, se estavam me seguindo, se eu estava com sede. Eu expliquei que estava fugindo da polícia política, era secretário da União dos Estudantes Secundaristas e precisava me esconder para não deixar o DOPS colocar as mãos naquela pasta, onde tinha as atas de assembléias secretas e o planejamento de diversas ações de protesto contra a ditadura fascista que tinha tomado conta do Brasil por ordem dos Estados Unidos. E queria aproveitar para pedir asilo naquele país social-democrata, mais para o social do que para democrata. Se fosse pego, seria torturado e morto como vários colegas já tinham sido, verdadeiros heróis a quem um dia a História, a grande História, faria justiça. Ela abriu mais ainda os dois olhos, como se todo o oceano fosse vazar por eles e pediu que esperasse um pouquinho. Fiquei sentado ali, muito sério, olhando os pôsteres e pensando em como seria bacana a vida naquele país, aquelas montanhas verdinhas, com a franja branca em cima, aqueles barcos lindos, as flores multicoloridas, os prédios antigos e bem conservados, as danças folclóricas, as meninas com tranças louras e mais olhos oceânicos. Quando já me via na moderna universidade local, estudando cinema, entrou um homem de terno e gravata, que me cumprimentou e perguntou minha idade. Mostrei minha carteira de estudante com idade falsificada para poder entrar nos filmes proibidos para menores de 18 anos, muito bem feita, ele nem desconfiou. Mas como não tinha outros documentos oficiais para mostrar, eu disse que até a instalação da ditadura os estudantes não precisavam andar com documentos oficiais, como a carteira de identidade. Agora ninguém andava seguro nas ruas, bastava um vizinho cismar com a sua cara para você ser acusado de subversão e sumir de vista. Eles me deixaram novamente sozinho na sala e reuniram-se em outro ambiente, falando naquela língua que já me embriagava, com a fascinação própria dos ignorantes. Quando voltou, o homem falou:

- Ela vai sair para comprar terno e roupa mais quente para você. Esta noite vamos embarcar para meu país, você será meu sobrinho, ninguém vai pedir documentos. Lá você vai formalizar o pedido de asilo político e ficará sob nossa proteção até a situação no Brasil se normalizar e você poderá voltar se quiser. Pediu um telefone para avisar aos meus pais, mas eu disse que eles moravam no interior de Minas Gerais, não tinham telefone. Tentei um choro, mas preferi manter a dignidade de militante a iniciar uma carreira de mau ator.

Foi tudo muito rápido: o primeiro terno, o primeiro vôo, a primeira vez longe dos pais. Quando o avião desceu naquele mar de neve eu nem acreditava. Desci os degraus da escadinha com um sorriso que nunca mais saiu dos meus lábios. Olhei o ônibus se afastar e fui atravessando a ponte do Jardim de Alá em direção ao Leblon. Era 1968, ano em que fui reprovado em Matemática.

2 comentários:

aminhapele disse...

Grande 1º de Maio o teu Gerson!
Eu,desgraçadamente,estava em Angola,na Guerra Colonial.
Pouco mais velho que tu,tinha à minha responsabilidade a vida e a morte de uma Companhia de Operacionais!
Eu!
Que sempre fui contra a Guerra Colonial!

Anónimo disse...

Boa peça, seu Gerson!

A narração é tão viva que vemos o "filme" todo.

mc